5 de novembro de 2017

Brisa do mar

Sentia muitas saudades de casa. Olhou com paciência o mar à sua frente como se buscasse além dele; olhou como se procurasse o que estava escondido. Não achou o que procurava, apesar do deleite da visão para os olhos. A concha que pegara da areia a pouco, movida pela curiosidade dos arcos espiralados, trouxe uma nova função: pôs ao ouvido para escutar uma canção que só existia dentro de si. Ouviu o vento soprar, bem longe. Como se estivesse ouvindo de volta os sons de casa, sorriu, e seu coração se aqueceu por um momento. Queria ainda ouvir mais além, talvez ouvir os risos e as conversas, ouvir de novo a sensação de vida à sua volta. Queria ouvir os sons parecidos com seu lar, mas não ouviu nada além do vento marítimo aprisionado na concha. Queria também ouvir respostas: o que estaria fazendo nesse lugar? Por que a rotina à sua volta lhe era agora estranha como roupas emprestadas? O que lhe faltava para chamar “aqui” de lar? Resgatou as memórias de infância, resgatou as melhores experiências, resgatou as experiências banais, resgatou o que aprendeu com os professores na escola e fora dela. Percebeu que caminhava como uma náufraga.

Todas as coisas estavam indo bem. Não havia muita preocupação além das entediantes rotinas e das resoluções de problemas diários. Estava perdida, talvez, ou só deslocada, mas não era de forma alguma geográfica. Tinha perdido o fio para o fim do labirinto dentro de si; ou era mais provável que apenas tenha se dado conta disso, não importa há quanto tempo já estivesse nessa situação.

Faltava amor à sua volta. E por faltar, todos pareciam buscá-lo com avidez em vários lugares, em várias coisas, em várias pessoas. Se em juventude lhe faltavam amor, culpavam a pressa, a ânsia. Se em maturidade lhe faltavam amor, culpavam a beleza que se esvai da forma. Se em velhice lhe faltavam amor, culpavam a memória. Vários culpados para desviar o foco das próprias escolhas, das oportunidades que passavam velozes diante dos olhos desatentos.

Começou a pensar em todas essas coisas por vontade própria, mas não sabia o que concluir com essa linha de raciocínio. Tirou o pensamento do mar e do céu, cravando os pés fundos na areia morna. “Por que ‘aqui’? Por que com essas pessoas? Se essa ânsia me preenche, é um castigo? É, ao menos, necessária? ” Parou para refletir no que acabara de pensar. Era necessário? Será que era preciso que convivesse com essas pessoas apressadas, enérgicas, mutáveis, inertes? Seria ela uma dessas pessoas também?

Todas as coisas estavam indo bem, e isso significava conforto, segurança e comodidade. Havia a pouco aprendido que o conforto vai deixando os olhos sonolentos, vai encobrindo as vistas e impede-a de ver o mundo com clareza. Sabia que precisava se desvencilhar do conforto, da cama macia. Teria trabalho, seria necessário esforço. Teria que transformar um pouquinho as coisas se quisesse que elas se parecessem mais com seu lar, lá do outro lado do oceano. Teria que arrancar sutilmente mais sorrisos, teria que superar as próprias restrições, os próprios preconceitos. Se faltava amor à sua volta, teria ela esse amor para oferecer? Não estaria também faltando amor em si? Eram perguntas difíceis de se fazer, pois lhe exigiam uma sinceridade consigo mesma maior que a habitual. Ser sincera com os outros era bem mais fácil. No entanto, sabia que identificar e arrancar algumas características que a acompanhavam há tanto tempo seria um processo demorado e dolorido. Tinha receio de perder autenticidade no processo, apesar de no fundo saber que isso era pouco provável – sua mente estava desesperada querendo voltar para o estágio de conforto.

Sacudiu a areia dos pés como se pudesse sacudir junto os pensamentos. Precisaria iniciar uma jornada e o começo seria cuidar melhor de si mesma, enquanto também cuidaria dos outros. Não era uma atitude partidária: ou ela ou os outros. Faria ambas ao mesmo tempo.

Agora em sua mente não imaginava o amor como flecha que aponta certeira o alvo. Lhe lembrava, com mais clareza, do laço que une o ramalhete em um abraço de todas as flores.



9 de maio de 2017

Das coisas mais bonitas que já vi

Uma beleza inexplicável. Tudo surge dali, mas não é ali que termina.
Os olhos se enchem de água sem tristeza alguma.
O peito expira longamente a força contida do ar.
A garganta pede passagem como se precisasse abrir-se ao meio.

Todos os sentidos se banham de beleza áurea e, ainda assim, não há necessidade alguma de posse.
Não é algo que é meu e precise morar em um pote. Isso seria egoísmo. E egoísmo não tem lá muita utilidade.

Um sentimento de afeto tão puro e unilateral que a admiração por si só já sacia.
A felicidade reside na continuidade e não no tato das mãos. Sentir o perfume de perto pouco importa se o perfume durar para sempre. E assim nem um pingo de egoísmo mancharia tão suave beleza.

Não é "deixar ir para que um dia volte". A gente nem percebe, mas sempre acaba personalizando tudo.

A admiração e a beleza podem andar de mãos dadas sem riscar a nossa própria face. A gente é que numera e insiste em competir. Mas nada disso de fato importa.

A beleza não nos acerta como soco. Ela nos preenche como ar. A gente pode até achar que a encontramos fora, no outro. Mas nunca saberíamos reconhecê-la se já não a tivéssemos conosco.

Birth of Venus (detalhe) 1486 -  Sandro Botticelli

1 de maio de 2017

O que tinha antes de tudo isso

"Qual a diferença que fazemos no mundo? Por que será que estamos aqui? Será que temos um destino maior que nos será revelado em breve ou a nossa simples existência já modifica o todo? Não sei bem ao certo o que pensar. Quando eu tinha meus 12 anos achava que tudo que fosse pra ser, seria, mesmo sem eu desejar. Achava que o amor viria até mim sem eu precisar me mexer. Mas pouco tempo atrás eu percebi que o amor vem quando estamos desarmados, quando nos abrimos e sentimos um pequeno medo ao contar sobre a nossa vida. São nesses momentos que acontecem as coisas mais importantes. Talvez o problema maior esteja no tempo. Porque assim como o tempo mudou meus conceitos, muda o conceito e o sentimento de todo mundo. E por mais que o tempo passe, e por mais que as mudanças aconteçam, sempre sobram vestígios de como era antes."

O lado bom de ter uma memória "ruim", porém ser acumuladora é encontrar pistas que eu deixei pra trás e não me lembrava mais. Esse texto que escrevi há quase 10 anos (21/11/2008) achei em um caderno no meio da minha bagunça e talvez tenha sido a fagulha que iniciou todo o processo em que me vejo inserida hoje.

Sempre foi uma necessidade quase que gritante encontrar referências em coisas/pessoas em que eu pudesse me identificar ou que me indicassem quem realmente sou. Esse "grito" foi lentamente suavizando à medida que eu comecei a por tudo em palavras e, finalmente, comecei a me "ler". Primeiro aqui, no blog em 2009. E depois, beeem depois, comecei a falar por mim mesma. É estranho imaginar alguém muda durante tantos anos, mas dizer coisas com a boca não significa de fato "se expressar". E essa última tarefa é a que venho aprendendo um pouco mais.

Hoje o "grito" virou um sussurro e a minha própria voz vem ganhando mais volume. Não é uma tarefa fácil: eu não nasci pronta e estou tentando me construir com toda a força que possuo, lutando contra aquilo que já haviam, inclusive, construído por mim. Também não é uma tarefa rápida: os textos que escrevi estão datados pra que eu possa me lembrar justamente disso todos os dias. Mas é uma tarefa que vem preenchendo os meus dias, cada um deles, com algo a buscar.

Eu ainda não tenho nenhuma das respostas em que buscava quando tinha 18 anos. Mas, intuitivamente, sei que irei olhar pra trás algum dia e conseguir juntar todos os vestígios.

Memory (1948) - Rene Magritte

30 de janeiro de 2017

A dor de não aceitar a continuidade

O fato de o ser humano muitas vezes se sentir superior ou alheio à natureza ofusca um entendimento natural da própria vida.

Nos momentos em que o coração está machucado e a mente cheia de dúvidas, se nega a perceber que esse é um estado temporário, que "a tempestade sempre passa". E se surpreende quando isso de fato acontece. Da mesma forma, a felicidade não é duradoura ou contínua e é frustrante esperar que ela realmente seja. Por mais que tudo esteja aparentemente em ordem consigo, há um mundo inteiro se movendo e imprimindo as maiores dores e alegrias diariamente.

A flor de um ipê aberta no auge do verão talvez não saiba que vai cair e morrer. Aparentemente, no inverno ela desaparece e não volta mais. Mas, nós aqui de fora, sabemos que não é bem assim. A flor se esconde no chão, mas irá novamente brotar na próxima estação.

O que seria da flor se ela não quisesse mais ser flor? Se não quisesse mais continuar? Há uma dor imensa na recusa de ser. Não controlamos os ciclos e nos afetamos por eles, sem saber que também somos flor aberta e exuberante, como também somos semente introspectiva debaixo da terra.

O declínio de nossos ciclos pode ser visível ou latente, mas sempre está ali de várias formas: o fim de um relacionamento, a saída de um emprego, a indecisão de caminhos com um diploma na mão, a morte de alguém que amamos.

Talvez a compreensão do valor dos declínios não seja possível à nossa mente hoje, nesse momento em que vivemos no mundo. Mas a natureza parece não falhar... e sempre nos entrega uma nova primavera.

Em um mundo de frio emocional e inverno interior, talvez não tenhamos conhecido a primavera ainda. Mas que possamos sempre contar com a sua chegada.

Mesmo que seja só dentro da gente.